quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Bíblia na vida, hoje...


Delze dos Santos Laureano *
Adital - ...A partir do Assentamento Pastorinhas e da Ocupação Dandara
1) Para início de conversa
Nada sei da Bíblia além do que aprendi nas interpretações em celebrações eucarísticas na Igreja do Carmo, em Belo Horizonte, ou nas leituras meditativas que faço sozinha, ou em pequenos grupos nos momentos de oração. O que me leva a uma busca incansável da compreensão do sentido dos textos bíblicos é a paixão pela interpretação mesma e a mania de filosofar, talvez a melhor herança que recebi do meu pai, um homem do campo com nome de profeta, Joel. É certo que mesmo sabendo, conforme disse Manoel de Barros, que "compreendo sempre o que faço, depois que já fiz", acompanha-me o desejo de buscar algo para além da experiência concreta e imediata dos fatos. Cultivo em mim uma sede de transcendência, a certeza da presença de Deus/amor na nossa vida, o que nos torna capazes de sermos mais do que a aparente fragilidade humana. E isso, percebo, se dá exatamente quando as pessoas agem coletivamente de forma organizada a partir de uma fé libertadora. Essa a minha experiência com a leitura da Bíblia.Como advogada de movimentos sociais por diversas vezes tive a sensação de estar vivendo a experiência já vivida e contada nos textos bíblicos. Esta percepção me ajuda a descobrir novos modos para a conquista de direitos sociais e a esperança de dias melhores para a nossa sociedade com os marginalizados na nossa sociedade e a partir deles.
2) Um dia o sol não se pôs no Município de Brumadinho
A primeira experiência que tive do texto vivo da Bíblia foi no Assentamento Pastorinhas, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. A área está hoje destinada ao assentamento de trabalhadoras/res da reforma agrária pelo INCRA. Conhecendo a história daquelas famílias e a sua luta obstinada por um pedaço de terra descobri o sentido de certa passagem do livro de Josué (Capítulo 10,12-14) (1). Após várias tentativas infrutíferas de conseguir, via burocrática, uma área para o assentamento, mais de 100 famílias de trabalhadores rurais sem-terra resolveram ocupar propriedades rurais abandonadas na região. Todavia, as famílias eram sempre retiradas da terra ocupada, após o pedido de reintegração de posse na justiça. Às vezes, antes mesmo de entrar na área eram impedidas pela polícia que, de alguma forma, tomava conhecimento das suas intenções. Aprendendo com essas experiências, as lideranças descobriram que era preciso manter sigilo absoluto acerca da gleba a ser ocupada, até mesmo de algumas pessoas que estavam acampadas com elas na beira da rodovia. Era também primordial escolher bem o dia da ocupação, de modo a retardar ao máximo a chegada da decisão judicial de reintegração de posse. E foi dessa forma, "sendo simples como as pombas, mas espertos como as serpentes", com muita ousadia e organização que os trabalhadores conseguiram enfim ocupar na madrugada de véspera do feriado de Carnaval de 2001 uma fazenda de 158 hectares, há muito abandonada pelo antigo proprietário. A primeira parte do plano já tinha um bom resultado: a polícia não teve conhecimento prévio da ocupação. A segunda parte era dar efetividade à ocupação da terra antes que o proprietário pudesse obter na justiça a liminar de reintegração de posse. Deste modo, na mesma madrugada, as famílias, após acomodarem as crianças nos carros velhos que conseguiram para fazer o trajeto até a ocupação, empenharam-se, todas, no trabalho de aração e de semeadura dos 14 hectares de terra que encontraram apenas com monocultura do capim. Em apenas três dias, trabalhando dia e noite, conseguiram arar e plantar os 14 hectares de terra com verduras e legumes. (2). Foi deste modo que o milagre aconteceu. Após o feriado, quando o juiz da Vara Agrária visitou o local para verificar a situação do imóvel ficou emocionado com o que viu. Verduras e legumes já estavam brotando por todos os lados. A terra já estava cultivada e o imóvel cumprindo a sua função social. A decisão do juiz culminou com a compra da área pelo INCRA.Tudo ocorreu conforme o livro de Josué, só que desta vez em Brumadinho, no Estado de Minas Gerais. "O sol se deteve e a lua ficou parada, até que o povo se vingou dos seus inimigos." Vingaram mesmo foram as plantas, semeadas ligeiras por aquelas/es trabalhador/res. Vingar para as plantas não significa matar, fazer o mal, significa viver, sobreviver, superar as forças da morte. Vingar dos seus inimigos para aquelas/es trabalhadoras/res Sem Terra significou fazer da terra o que o antigo proprietário não foi capaz ou não quis fazer. E como prossegue o texto do livro de Josué, "nem antes, nem depois, houve um dia como esse, quando Javé obedeceu a voz de um homem." Naquele dia, o Deus da vida ouviu foi o clamor das mulheres, as lideranças do Assentamento Pastorinhas, que cansadas de ver faltar o alimento na mesa, mandaram o sol se deter no céu para que a noite (que seria a expulsão daquela terra que não cumpria sua função social) não viesse antes de ser toda a terra plantada. Com a luz do dia, e sendo luz de Deus, as pastorinhas, em mutirão, prepararam a terra e semearam não apenas sementes de verduras, mas sementes de uma vida com mais luz, dignidade. Assim, impediram que a noite da opressão anterior se repetisse. Enquanto milhares buscavam alegria e luz no Carnaval, 22 famílias, na luta, plantaram na terra sementes que tem lhes dado dignidade, alegria e luz para todos.
3) Haverá um novo céu e uma nova terra de Dandara
Dandara, a mulher, ontem foi uma guerreira companheira do líder Zumbi dos Palmares. Como Zumbi preferiu a morte à escravidão. Vivendo livre em uma terra com os seus irmãos ex-escravos não se submeteu aos interesses dos grandes proprietários de terra, que dos negros só queriam a força de trabalho, o suor e o sangue. Desapareceu deste mundo quando desapareceu Palmares, a república negra da Serra da Barriga em Alagoas, nas terras Brasil.A Dandara de hoje, uma comunidade, é a ocupação de famílias de trabalhadores urbanos e rurais ocorrida neste ano de 2009, na Quinta-feira Santa, no bairro Céu Azul,região da Pampulha, em Belo Horizonte. No primeiro momento, aqueles trabalhadores, cansados de serem enxotados que nem cão vadio, de um lado para outro, só tendo a moradia de favor ou de aluguel em barracos de favelas e áreas de risco, entenderam que somente se organizando seriam capazes de conquistar o direito à moradia e o direito a uma vida digna. Naquela madrugada, aproximadamente 130 famílias de sem-casa e Sem Terra cortaram a cerca e entraram em um imóvel de 400.000 metros quadrados - 40 hectares -, completamente abandonado há mais de 3 décadas. Uma área de terreno já urbanizada na região metropolitana de Belo Horizonte. Pensavam estar entrando em uma área pública, reconhecidamente devoluta, e que, portanto, nos termos da lei, pertenceria ao Estado de Minas Gerais. Somente após raiar o sol ficaram sabendo que a área é reivindicada pela Construtora Modelo, que quer fazer no local mais um grande empreendimento imobiliário na capital mineira.Mas o equívoco, em nada atrapalhou o intento daquelas famílias de trabalhadores marginalizados. A disposição de luta e a legitimidade de suas reivindicações mobilizaram diversas forças sociais de apoio e abrigou centenas de novas famílias que, atualmente, já somam mais de mil acampadas e mais 500 famílias em uma lista de espera. Todas essas pessoas descobriram uma unidade de luta que os identifica. E foi a partir desses acontecimentos que percebi a riqueza de outro texto bíblico: o livro do profeta Isaías (Capítulo 65,17-25), que narra a construção de um novo céu e de uma nova terra. O autor deste texto nos apresenta a realização do projeto de Deus: vida em abundância para todos e tudo, um mundo de paz, harmonia e alegria. Quem esteve lá e não sentiu esse projeto de Deus na Ocupação Dandara?Aquelas famílias com coragem e disposição para a luta e para o trabalho mostraram na prática que é possível criar esse novo céu e essa nova terra. Já na Quinta-feira Santa, dezenas de lideranças das Brigadas Populares, do MST (3) e do Fórum de Moradia do Barreiro "lavaram" os pés de centenas de famílias crucificadas na falta de reformas agrária e urbana. Partilharam o pão do sonho da casa própria conquistada na luta. Beberam o vinho amargo de resistir à truculência da tropa de choque que aterrorizou todos no acampamento, enquanto mundo afora nas igrejas cristãs celebrava-se a missa do lava-pés. Antes da Sexta-feira Santa, na comunidade Dandara, Jesus já havia ressuscitado. Ali brilhava, como no Natal, a estrela que guiou os magos para o encontro com Jesus de Nazaré. O projeto revolucionário de Jesus não morreu na cruz. Ele está vivo em cada um/a dos que acreditam ser possível viver melhor. E viver melhor é caminhar junto nesta vida, com coragem e determinação, conspirando a construção de "outra terra e de outro céu’. Conforme já anunciou a irmã Rosário: estão todos ali caminhando seguindo bons pastores e boas pastoras.E realmente, a Ocupação Dandara é o mais novo sinal de que Deus está criando ali pelas mãos e organização dos trabalhadores um novo céu e uma nova terra. Nada está pronto, mas está tudo em construção. "As coisas antigas nunca mais serão lembradas, nunca mais voltarão ao pensamento." Por isso já estão todos alegres. Não haverá mais choro ou clamor. Lá, no Dandara, correm por todo lado as crianças, que não estão condenadas a morrer precocemente, de fome ou vítimas do tráfico de drogas. Tudo porque naquela terra serão plantados alimentos, serão construídas casas onde não haverá espaço para drogas e violência. A ordem ali é que crianças estudem e brinquem. Criança que brinca e estuda é projeto de cidadania. Famílias que vivem em comunidades são famílias de esperança.Ali no Dandara, de forma organizada, trabalhadores e pessoas que têm compromisso com a vida, como no livro de Isaias, "construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer", como sempre aconteceu no mundo em que viviam: pedreiros sem casa que sempre fazem casas luxuosas para outros morar. Ali, "a vida do povo será longa como as árvores." Ninguém trabalhará inutilmente, ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo, porque todos serão a descendência dos abençoados de Javé."É bom que os lobos e os leões conheçam o que está no texto do profeta Isaías e venham aprender a se alimentar de todas essas belezas com o povo do Dandara, porque está escrito no texto sagrado que "ninguém causará danos ou estragos ali." Olhem por toda parte naquela ocupação e ajoelhem-se diante do milagre de que são capazes os pobres. Vejam como podem construir com os restos dos ricos. As 1084 barracas são todas de pedaços descartados de construções, madeiras velhas, carpetes usados, plásticos e panos emendados. A partir do lixo de uns estão construindo um novo céu e uma nova terra. São capazes de plantar ao redor das barracas jardins - na terra dura ainda sem adubo -, porque a vida nasce em todos os lugares. São capazes de colocar dons e talentos a serviço de quem precisa. Quem já foi vigilante e prestou serviço militar, com muita alegria e dignidade, ajuda na segurança do acampamento. Quem é carpinteiro, além de construir o seu abrigo ajuda outras famílias a fazer as suas barracas. Unidos fizeram-se fortes para resistir à truculência da tropa de choque para esperar o milagre da suspensão da ordem de reintegração de posse pelo Tribunal de Justiça.Tudo isso confirma o que temos anunciado há muito tempo: um mundo novo está sendo construído, com a graça de Deus e pelos pobres que irradiam a luz e a força divinas no mundo.Quem tiver olhos para ver, veja lá e aqui: http://www.ocupacaodandara.blogspot.com/.
Belo Horizonte, 12 de maio de 2009.
Notas:
(1) "Foi então que Josué falou a Iahweh, no dia em que Iahweh entregou os Amorreus aos israelitas. Disse Josué na presença de Israel: "Sol, detém-te em Gabaon, e tu, lua, no vale de Aialon!" E o sol se deteve e a lua ficou imóvel até que o povo se vingou dos seus inimigos. Não está isso escrito no livro do Justo? O sol ficou imóvel no meio do céu e atrasou o seu ocaso de quase um dia inteiro. Nunca houve dia semelhante, nem antes, nem depois, quando Iahweh obedeceu à voz de um homem. É que Iahweh combatia por Israel."
(2) Optaram por plantar verduras e legumes, porque as crianças estavam desnutridas. Precisavam garantir o mais rápido possível alimentos de qualidade para salvar as crianças. Adubaram de forma orgânica, porque Valéria, uma das Pastorinhas, tinha se formado em Técnica Agrícola na Fundação Helena Antipoff, onde agroecologia é uma prioridade absoluta.
(3) Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; http://www.mst.org.br/

‘Não basta salvar a nós, indígenas; mas, toda a humanidade e toda a criação’


IHU - Unisinos *
Adital - "Em seu caráter de indígena, nossa teologia se converteu em trincheira para defender nossa identidade mais profunda e em possível ameaça para a nova teologia trazida da Europa, que a atacou persistentemente; e, por isso, ela se fez clandestina, se mascarou ou se sintetizou com a perspectiva religiosa prevalente, a fim de conseguir sobreviver." A explicação é Eleazar López Hernández, indígena mexicano, com trinta anos de sacerdócio na diocese de Tehuantepec. Em entrevista concedida por e-mail a IHU On-Line, mostra a importância da Teologia Índia no sentido de resgatar valores adormecidos pela sociedade atual e afirma que ao longo dos anos, a "teologia indígena teve que aprender a ajustar-se às possibilidades que dava o contexto social e eclesial de cada momento".
A defesa de seus costumes, da maneira particular de ver vida e se relacionar com Deus, não significa que a entrada dos índios na Igreja "tenha sido somente uma simulação ou um mecanismo de sobrevivência", assegura. A conversão dos indígenas em cristãos "não implicou uma ruptura com nosso processo anterior de busca de Deus, senão sua afirmação, fortalecimento e plenificação", assinala. E prossegue: "Desde o princípio ficou muito claro para nós que o Deus de nossos pais e avós (Ipalnemohuani = O que nos dá a vida; e os muitos outros nomes de Deus que eles usavam aqui) é o mesmo Deus de nosso Senhor Jesus Cristo".
A partir do momento em que a consciência ecológica ganhar dimensão e destaque na humanidade, a Teologia Índia vai desenvolver um trabalho importante no sentido de "deter a agressão brutal que a economia capitalista realiza sobre a terra, tornando-a sustentável". E projeta: "assim poderemos sonhar entre todos(a)s que ‘outro mundo é possível’".
Eleazar López Hernández nasceu em Juchitán, Oaxaca, México, e é descendente de uma família indígena zapopteca. Ingressou no seminário em 1961 e formou-se em Filosofia e Teologia. Também participou do primeiro curso de pastoral indigenista em Caracas, da primeira Conferência dos povos indígenas, em 1975, em Vancouver, da contribuição indígena para o Encontro de Puebla e de Santo Domingo, como conselheiro. Atualmente, trabalha no Centro de Auxílio às Missões Indígenas, participa da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo e da equipe teológica Ameríndia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - No III Simpósio latino-americano de Teologia indígena, organizado pelo Celan em 2006, foi abordada a Cristologia indígena. Quais são as referências cristológicas para falar de Cristologia indígena?
Eleazar López Hernández - Quando falamos de "cristologia indígena", consideramos duas vertentes de reflexão:
a) A recepção inculturada que fizemos nós indígenas da evangelização cristológica, feita pelos primeiros missionários;
b) A elaboração teológica indígena a partir das Sementes do Verbo plantadas por Deus na história e nas culturas de nossos povos antes da primeira evangelização. Encontramos estas sementes plasmadas em suas tradições mais antigas.
Na primeira vertente, nós, indígenas, captamos que, apesar do inadequado da primeira evangelização que nos chegou unida ao projeto colonizador, a Igreja era portadora de uma proposta valiosa e digna de ser assumida. Por isso, nosso(a)s avós se converteram a Cristo e o assentaram na esteira de nossa busca de Deus. Mas, por aquele dito de que "quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur", nós, indígenas, usamos nossas categorias teológicas anteriores para entender e viver a fé cristã; e, neste sentido, incorporamos Cristo em nossa cultura, indigenizando-o; nós o inculturamos em nossos esquemas, revestindo-o com nossos trajes tradicionais. Em outras palavras, nós o recebemos em nossas malocas e em nossas casas culturais. E é isto que mostramos ao falar agora de cristologia indígena.
Porém, não só permanecemos aí como se tudo o que se refere a Cristo viesse de fora; também remexemos em nossa história e em nossos cântaros milenares para encontrá-lo existindo no meio de nós. Assim, na segunda vertente, detectamos as "Sementes do Verbo" que pré-existiam, antes da chegada da Igreja, em nossas culturas e as explicamos hoje para mostrar que Deus sempre nos acompanhou e nos manifestou seu amor de Mãe-Pai. Essas sementes são a prova da presença entre nós do Verbo, "que ilumina todo homem que vem a este mundo" e se manifesta na sabedoria milenar de nossos povos (encerrada nos mitos e ritos) e nas pessoas históricas (como Quetzalcóat), que viveram profundamente as idéias ou utopias que animaram nosso longo caminhar. Esta é a cristologia feita a partir de nossa história da salvação, que levamos com prazer aos demais irmãos na fé e que não tem por que inimizar-se com a cristologia oficial. Nós a encontramos na vivência da religiosidade popular indígena e mestiça como um conteúdo teológico e cristológico impressionante que se expressa nos nomes e atributos que damos a Cristo. Esta nomenclatura teológica já está sendo sistematizada por irmãs e irmãos indígenas.
IHU On-Line - Como a teologia Índia se move e se condiciona dentro dos espaços eclesiais e aí se reproduzem?
Eleazar López Hernández - A teologia dos primeiros povoadores deste continente existe desde que nossos povos fizeram sua aparição nestas terras, pois Deus tem sido a razão de ser e o garante de nossa vida desenvolvida aqui em milhares de anos. Nossa teologia nativa foi feita "indígena" quando os europeus impuseram, com o descobrimento e a colonização, essa categoria social à realidade dos povoadores nativos. Em seu caráter de indígena, nossa teologia se converteu em trincheira para defender nossa identidade mais profunda e em possível ameaça para a nova teologia trazida da Europa, que a atacou persistentemente; e por isso ela se fez clandestina, se mascarou ou se sintetizou com a perspectiva religiosa prevalente, a fim de conseguir sobreviver. A religiosidade popular foi o espaço privilegiado de sua reprodução durante estes últimos 500 anos.
Neste sentido, a teologia indígena precisou aprender a ajustar-se às possibilidades que dava o contexto social e eclesial de cada momento. Quando houve boa disposição de aceitá-la, ela se manifestou abertamente; e, quando houve recusa, se refugiou nas covas e nas montanhas.
Esta atitude indígena de defender, inclusive ante a Igreja, nossa maneira particular de ver a vida e de relacionar-nos com Deus não significa que nossa entrada na Igreja tenha sido somente uma simulação ou um mecanismo de sobrevivência. As religiosas, os sacerdotes e os diáconos indígenas de hoje cremos que, apesar das sombras e dos espinhos da ação missioneira da Igreja, houve em nossos(as) avós uma autêntica conversão da mente e do coração a Cristo e ao seu projeto de vida. Só que esta conversão não implicou uma ruptura com nosso processo anterior de busca de Deus, senão sua afirmação, fortalecimento e plenificação. Desde o princípio, ficou muito claro para nós que o Deus de nossos pais e avós (Ipalnemohuani = O que nos dá a vida; e os muitos outros nomes de Deus que eles usavam aqui) é o mesmo Deus de nosso Senhor Jesus Cristo. É o que está inserido na narração da Virgem de Guadalupe no México. Não temos por que assumir um eliminando o outro, senão fazendo que ambos se abracem porque são o único Deus verdadeiro.
IHU On-Line - Em que sentido a teologia indígena nos ajuda a repensar a organização social e política da sociedade e do mundo, no sentido de respeitar as diversidades, a interculturalidade e o meio ambiente?
Eleazar López Hernández - A teologia indígena de hoje forma parte da vida e da luta dos "povos originários" deste continente, e está unida à cultura e história destes povos. Não é somente uma palavra sobre Deus, senão uma proposta ampla sobre a totalidade da vida, na qual Deus está profundamente involucrado. Para entender esta teologia, é preciso tomar em conta o modo pelo qual nós indígenas olhamos não só Deus, senão também a sociedade e a inteira criação.
É aí que nós, indígenas, podemos ajudar a superar a crise que se abate atualmente sobre a humanidade. Frente ao individualismo que isola e faz de cada pessoa um lobo para os demais ("homo homini lúpus"), nós, indígenas, resgatamos o valor da família humana e da comunidade como poder solidário, que nos torna capazes de superar qualquer problema; frente ao lucro capitalista, enfatizamos o valor do serviço e da gratuidade; ante a pressão uniformizante da globalização neoliberal, professamos a aceitação da diversidade como riqueza humana e impulsionamos a harmonização do conjunto mediante o diálogo intercultural e inter-religioso como mecanismo eficaz de solução de conflitos e de colaboração solidária.
Frente à depredação do meio ambiente para gerar rápidos ganhos, propomos a colaboração amorosa e respeitosa com a Mãe Terra como fonte de vida para todo(a)s; frente ao consumismo esbanjador impulsionado pelo mercado, assinalamos a austeridade como única maneira do bom viver sem danificar o meio ambiente. Estas propostas não são belas teorias que lançamos para ver quem as quer vivenciar, mas práticas cotidianas em muitas das comunidades indígenas até o dia de hoje.
IHU On-Line - A luta indigenista apareceu com mais força na Bolívia, no Brasil, no Paraguai. Quais as articulações que favoreceram essas lutas sociais? Que outras ações se deveriam praticar neste sentido?
Eleazar López Hernández - Certamente, depois de uma letargia de séculos, os povos indígenas despertaram para continuar novamente sua caminhada. Presenciamos agora a ressurreição do índio. A Bolívia é, desde logo, a melhor expressão da pujança deste despertar, pois aí os povos indígenas e camponeses sacudiram o jugo de uma minoria não indígena que os dominava e se deram um presidente de seu próprio sangue e cultura. Porém, a luta indígena se dá em todo o continente sob formas muito variadas e com resultados diferentes: Equador, Brasil, Paraguai, Chile Guatemala, México etc. Setores importantes das igrejas cristãs tiveram de ver com este despertar por seu acompanhamento pastoral; também lutadores sociais que se acercaram dos indígenas contribuíram com recursos e assessorias diligentes; porém, sobretudo são os próprios indígenas que tomaram consciência de sua dignidade, de seus direitos e do valor de sua palavra nestes tempos de crise. Chegamos à conclusão, como o expressam acertadamente os maias, que um novo horizonte de vida se vislumbra por trás das montanhas; ou, como dizem os andinos, o pachakutic está chegando. Chegou o tempo de preparar-nos e de preparar a terra para uma nova semente de vida.
Hoje, mais do que nunca, existem redes e articulações de movimentos indígenas que compartilham saberes e experiências de nossa luta pelos quatro cantos do continente; e estão se dando a mão para seguir em frente. O protagonismo indígena cresceu tanto que no momento atual os acompanhantes não indígenas seguem sendo importantes, embora não sejam indispensáveis para o futuro do processo.
IHU On-Line - Grande parte da população mundial vive em zona urbana. Somente no Brasil, mais de 805 vivem em cidades. Como sensibilizar essas populações sobre a importância do cuidado com a terra? Você vislumbra um cuidado maior com a terra no contexto da América Latina?
Eleazar López Hernández - É uma verdade inquestionável que a população mundial está se movendo em direção às cidades. Também o povo indígena avança para as cidades. Em vários países só estão permanecendo, nos territórios indígenas tradicionais, menos de 50% dos membros das comunidades (mulheres, anciãos e crianças). Porém, isso não significa que se perde o amor e o cuidado da terra. Em vários países, como no México, os que migram, especialmente aos Estados Unidos, normalmente retornam depois de um tempo não muito longo de trabalho, ou enviam grande parte do que ganham, para sustentar suas famílias e também para obras e serviços comunitários. Desta maneira, muitas comunidades se renovam e melhoram sua infraestrutura (prédios municipais, igrejas, escolas).
Nestes tempos está se dando um fenômeno inverso ao que se deu na época colonial, em que se obrigou a nós indígenas a reduzirmos os pequenos espaços das zonas nas quais nos encurralaram. Agora saímos dessas áreas de reserva e de refúgio para colocar-nos no amplo mundo da globalização, recuperando os espaços antes perdidos e aprendendo a interagir na globalização com outros povos e culturas, sem perder nossos valores e nossa proposta de vida. E aí vamos descobrindo que nossa palavra também é válida e valiosa para outros seres humanos que entendem e assumem que juntos vamos pelo menos caminho da terra, nossa mãe e casa grande de todo(a)s. Desta maneira, nossa luta se ampliou, unindo-se a outras lutas de irmãos/irmãs na dor e na esperança.
Por exemplo, os zapotecas do Istmo de Tehauntepec, no sul do México, ao migrar às cidades do norte, nos demos conta que nosso amor à terra ("layú") não se reduz à luta por nossos direitos territoriais, senão que inclui também a grande luta pelos direitos da Mãe Terra ("Guidxilayú"), que abriga por igual a seus filho(a)s indígenas, negro(a)s, branco(a)s, amarelo(a)s. E assim, junto com outros seres humanos chegamos à conclusão de que não basta salvar a nós indígenas; é preciso salvar toda a humanidade e toda a criação. Neste sentido, vislumbro no futuro que, na medida em que esta consciência ecológica fundamental, que está no pensamento e na teologia indígena ancestral, se transmitir por contágio aos demais, será factível deter a agressão brutal que a economia capitalista realiza sobre a terra, tornando-a sustentável; e assim poderemos sonhar entre todo(a)s que "outro mundo é possível", tal como se proclama nos Fóruns Sociais Mundiais. O modelo capitalista já não tem alternativas de vida ante as crises cada vez mais recorrentes que lhe sobrevêm. Faz falta um novo modelo de vida, mais humano, mais ecológico e mais divino. Nós, indígenas, temos muito que aportar a esse respeito.
IHU On-Line - Quais são os desafios da teologia indígena na América Latina?
Eleazar López Hernández - Desafios da modernidade neoliberal. O maior desafio que se apresenta não só à teologia indígena como tal, mas também aos povos indígenas, é a ameaça de extinção que pesa sobre nós e sobre nossas culturas por causa do modelo atual de sociedade que avança sobre o que resta de nossos territórios, de nossos recursos naturais e inclusive de nossos saberes ancestrais. Como impedir que sucumbamos ante a violência dos mega projetos viários, turísticos, mineralógicos, de produção energética, de biocombustíveis? Como manter nossa vida cultural e espiritual, quando, por causa da migração forçada já fomos movidos a terras estranhas?
Desafios das próprias comunidades indígenas. O impacto da modernidade no mundo indígena está causando um enorme abismo entre os mais idosos e as novas gerações. Os mais velhos já não encontram nos jovens o mesmo eco que antes existia para assegurar no futuro a continuidade das tradições; isso devido principalmente à educação alienante que esses jovens recebem das escolas oficiais e devido aos "valores" que transmitem os meios de comunicação. Isso se agrava com o afastamento destes jovens em relação às suas comunidades, por causa da migração. Se não encontrarmos maneiras de resolver satisfatoriamente este problema, entusiasmando as novas gerações indígenas por sua cultura e espiritualidade, pode dar-se a extinção indígena mediante a desintegração das comunidades que são as verdadeiras depositárias e garantes da reprodução cultural e religiosa.
Porém, precisamente por este desafio tão extremo, muitos irmãos e irmãs estão realizando processos interessantes de reformulação cultural e religiosa, exatamente como sucedeu na antiguidade, quando passamos de ser nômades a sedentários e daí nos guindamos às altas civilizações. E nisso também está havendo muita criatividade e entusiasmo entre as novas gerações. A teologia indígena está se recriando nos novos contextos de hoje, resgatando mais do que a terra, o espírito dos mitos e dos ritos; e envolvendo-se nas atuais lutas de nossos povos pela vida digna, pelos próprios direitos e pela autonomia.
IHU On-Line - Como a teologia indígena se ajusta à conjuntura atual?
Eleazar López Hernández - A teologia indígena atual não é mera repetição de mitos e ritos do passado, como uma tradição que se vai tornando cada vez mais obsoleta; senão uma utilização das ferramentas e das luzes do passado para entender o presente e para construir futuros dignos de serem vividos. A teologia indígena de nossos tempos é necessariamente resultado de ajustes da experiência de Deus que fazem nossos povos e de nossa sabedoria religiosa às conjunturas cambiantes. Ao responder aos desafios de hoje, damos razão e testemunho da esperança que nos anima a seguir lutando como o fizeram nossos antepassados. Mais que um conteúdo teológico fixo, que mantemos contra o vento e a maré, a teologia indígena é um olhar de fé com o qual nos atrevemos a enfrentar as vicissitudes da história que nos toca viver em cada momento.
IHU On-Line - Quais foram os ganhos e as limitações em usar o termo "Teologia indígena" na V Conferência em Aparecida? Quais são os ganhos e perdas dos indígenas em Aparecida?
Eleazar López Hernández - A Teologia indígena ganhou muito em Aparecida. Jogamos na cancha da V Conferência do Episcopado latino-americano e fizemos vários gols, embora também tenham feito alguns contra nós. Como já expressei no balanço que fiz desta Conferência: "Muitas coisas nós, indígenas, conseguimos em Aparecida e que já foram assinaladas: em primeiro lugar, estivemos física e moralmente em Aparecida, através de vários indígenas delegados oficiais de suas Conferências; através de bispos defensores da causa indígena, de teólogas e teólogos solidários da Ameríndia; através de irmãs e irmãos indígenas que expressaram sua voz fora da Assembléia por diversos meios e obtiveram impacto em muitos bispos. A presença indígena foi evidentemente notória e significativa".
"Os inimigos da causa indígena não conseguiram calar-nos nem condenar-nos, embora houvesse intentos de fazê-lo. Todo o contrário: obtivemos simpatia, aproximação e diálogo em Aparecida. Pouco a pouco fomos oferecendo, como Juan Diego, nossas flores cortadas no Tepeyac, e pudemos fazer que teólogos e bispos de Aparecida fossem se sensibilizando e abrindo para nossa causa. Com o auxílio de teólogas e teólogos amigos elaboramos aportes e modos indígenas, solidamente fundamentados e adequadamente expressos, que circularam exaustivamente nas mesas de debate. Todos tiveram acesso à palavra e à perspectiva indígena e a tomaram em conta para suas decisões. Não é fruto da causalidade que no final houvesse um amplo eco da voz indígena na Conferência. Por este esforço coordenado dos de dentro com os de fora se alcançou que praticamente todas as propostas da Pastoral indígena latino-americana recebessem o aval e fossem incorporados no documento final, embora alguns tenham sido matizados."
Em relação ao que não ganhamos, reconhecemos que a única perda em Aparecida foi a não oficialização do termo Teologia indígena no Magistério da Igreja. O manejo que se deu do borrador do documento conclusivo e as votações que se fizeram para aprová-lo não nos favoreceram por uma margem muito pequena; e este resultado ligeiramente adverso foi possível apesar da oposição explícita do responsável da Congregação para a Doutrina da Fé.
Por isso, no final, um bispo do Panamá comentou: de que outra oficialização necessitamos, se o próprio Papa Bento XVI usou sem matizações o termo "teologia indígena" em cartas dirigidas ao Celam, indicando-lhe que leve a cabo um processo de discernimento para clarificar os pontos nevrálgicos que ainda existem na Teologia indígena? Se a mais alta autoridade da Igreja usou o termo Teologia indígena, que mais faz falta para oficializá-lo na Igreja?
Outros bispos acrescentaram: Que bom que não a oficializaram, pois assim a Teologia indígena pode seguir caminhando na liberdade dos filhos de Deus.
IHU On-Line - O senhor diz que a teologia indígena vive um novo momento. Como as promessas e esperanças se confrontam com temores e incertezas nessa trajetória?
Eleazar López Hernández - As ‘promessas e esperanças’ em relação à Teologia indígena, nós as temos majoritariamente do lado das comunidades crentes do mundo indígena; os ‘temores e incertezas’ se localizam especialmente do lado dos que tutelam a ortodoxia da instituição eclesiástica. Porém, não nos paralisam os temores e incertezas; pelo contrário: são acicates para avançar no diálogo. Na medida em que os adversários da teologia indígena nos apresentem mais claramente suas dúvidas e questionamentos, mais podemos ajudar a clarificá-los. É o que tem sucedido nos simpósios e oficinas de Teologia indígena organizados pelo Celam. Também nisso estamos aprendendo a interagir com a diversidade teológica que existe na Igreja.
IHU On-Line - Qual é o futuro dessa teologia dentro e fora da Igreja?
Eleazar López Hernández - Desde logo fora da Igreja, a teologia indígena está tendo muita ressonância. Os movimentos indígenas atuais acodem cada vez mais a esta teologia para afiançar seus passos na luta; porque ela é sua maior força.
Dentro da Igreja, a repercussão também é ampla. Muitos bispos de Igrejas particulares com população indígena a estão assumindo explicitamente em seus planos pastorais e na formação de seus agentes; também várias congregações religiosas a tomam em conta para seus projetos de formação, de vida comunitária e de ação missioneira; teólogo(a)s de diversas associações teológicas começam a incorporá-la em suas análises e colocações.
O fato de que tenha havido um espaço tão grande nos debates de Aparecida é sinal de que a Teologia indígena está impactando positivamente no interior da Igreja, não só em nível particular, mas também nível universal, envolvendo suas mais altas autoridades. Poucas teologias obtiveram isso em tão pouco tempo. Mas, o mais importante é que nós indígenas, que estamos dentro da Igreja, a estamos assumindo de maneira cada vez mais lúcida e consciente. E isto, do meu ponto de vista, já não terá marcha atrás.

* Instituto Humanitas Unisinos