segunda-feira, 14 de março de 2011

É por amor

É por amor
Sim é por amor!
Sim é por amor à vida que cantamos.
E tantas, vezes, choramos também.
É por amor à vida, que estamos lutando.
e vamos andando lentamente para buscar
a luz e a liberdade das manhãs de sol.
É por amor,
sim é por amor à vida, evidentemente,
que encaramos de frente essa imensa
dor que se impõe nesse reinado amargo do
ódio presente.
É por amor à vida,
que estamos nas ruas, nas praças, nas estradas...
Sim, é por amor, é por amor à vida
que marchamos na madrugada de lua nova
levando nos braços a fúria das tempestades,
prontos a resgatar a terra que nos tomaram.
Vamos replantar as flores e as sementes que
há séculos estão em cio.
É por amor, sim,
é por amor à vida
que profundamente doloridos
recolhemos em nossos braços
os que foram brutalmente feridos
e quando já não podemos devolver-lhes
a respiração nós comungamos de seu sangue
e os fazemos ressuscitar em milhares
de vidas e sorriso!
É por amor à vida que escrevemos nas pedras
os poemas da esperança rebelde, que pichamos
nos muros e nas portas as frases corajosas de
um futuro novo, que dançamos nas festas de sábado,
no batuque do carnaval de um povo livre!
É por amor
que abraçamos, que nos beijamos na esquina
e já não tememos andar de braços dados
seguindo a bandeira da paz e da ternura
conseqüente!
É por amor, sim, é por amor
Que desesperadamente amamos!

Zé Vicente

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Paraense é assim...


Existem coisas que só paraense, seja ele de nascimento ou por adoção, sabe o que é: passar numa esquina e salivar só de sentir o cheiro do tucupi, vindo de um bom tacacá, ou o cheiro da maniçoba, empinar papagaio do Cobra ou fazer pacientemente, com talinhas de palmeira e papel de seda uma curica e se perder no tempo, no encantamento com sua arte subindo os mais altos céus e dar laço e correr atrás do papagaio que xina. Paraense joga peteca e não bolinha de gude, tem seguro contra as mangas que quebram os pára-brisas dos carros, uma pena é não existir seguro para a cabeça, eu mesmo quase já fui alvo delas...

Paraense conhece mato, marés, conta estória do boto - moço bonito, mas com um pitiú de peixe e que mesmo assim, encanta as moçoilas mais desavisadas nas noites de lua cheia. Não sabe o que é pitiú? O paraense sabe! Se tem uma coisa que paraense sabe, é fazer comida, é irresistível ir ao Pará e não degustar de uma deliciosa unha de carangueijo (é comum ouvir alguém pedir uma coxinha de caraangueijo, rsrsrs) - a sopa, também, é uma delícia -, caruru, casquinha de mussuã, pato no tucupi, peixe moqueado, sem contar a experiência única de comer um bom avuado com os amigos.
Paraense é carinhoso, chama todo mundo de mano, mana, maninho, fica logo amigo, faz almoço, jantar, põe logo dentro de casa. Eita povo hospitaleiro! Fala se não é? Por aqui tomamos açaí pra dormir a sesta, com farinha d’água ou de tapioca, com açúcar ou sem, com charque, camarão, pirarucu ou sem nada só ele purinho, bom que só! Temos os frutos mais deliciosos e mais exóticos, isso o paraense, esteja ele onde estiver jamais esquecerá, o gosto do cupuaçu, bacuri, uxi, graviola, pupunha, taperebá, castanha do pará, muruci, piquiá, tucumã, Bacaba. Delícias que proporcionam criar os melhores inesquecíveis sabores de sorvetes, sem contar o maravilhoso sorvete de tapioca. Além, dos saborosos bombons do Pará.

Paraense tem alto verão em julho, quando a maioria do Brasil morre de frio e nós por aqui bronzeadérrimos, acentuando a beleza de nossa morenice! Festa? É com a gente mesmo! Em todo o canto tem uma música legal, um legítimo carimbó, um violão, uma guitarra, uma aparelhagem botando todo o mundo pra dançar. Por aqui, tomamos banho de rio, barrento como o Guamá ou a baía de Guajará, de rio azul transparente como o Tapajós, de Igarapé Gelado de bater o queixo de frio.

Paraense quando não tem nada pra fazer vai pra beira do rio ver o pôr do sol vermelho e os pôpôpos passarem. Quando está estressado vai pra Salinas, Marapanim - eita cidade paid’égua -, Crispim, Marudá, Algodoal, Mosqueiro, Cotijuba, Marajó, Ajuruteua ou ata uma rede na sacada de casa e fica lá, de pezinho pra fora esfriando a cabeça. Somos índios, místicos e curandeiros, mas, também, com toda essa energia de águas e mata não poderia ser de outro jeito!

Paraense vai ao Ver-o-Peso, compra ervas, faz chá, garrafadas, banho de cheiro - uma delícia! Curas de corpo e de alma. Ao mesmo tempo temos o privilégio de ter as bênçãos de Nazica, com toda a intimidade que eu, como paraense, tenho pra chamá-la assim. Minha Santinha, que em outubro sai toda linda fazendo todo o mundo, paraense, turista, brasileiro e gringo engasgar de emoção.

Somos orgulhosos por sermos assim essa mistura morena, brejeira e gostosa, por sermos autênticos, pela cultura que temos, por nosso sangue índio que a tantos outros se misturou e que a nós, nos faz muito, mas muito especiais!

Nota:---------------------------------------------------------------
Costura de autoria desconhecida, remendos e ajustes feitos por Mauro Juventude.
www.soucabano.blogspot.com

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Será que não há mais justos?


Bom, cá estou eu. Há aproximadamente 5.000km longe de minha amada terra, com uns 3 casacos por causa de um friozinho e consternada com o tornado que passou por aqui.
Estou em Santa Catarina.
As chuvas destes dias (desde que cheguei só vi um solzinho no dia 07/09, quando o “sol da liberdade” nos deu o ar da sua graça e hoje) deixaram milhares de desabrigados, pessoas que viram o trabalho de uma vida ser destruída em pouco mais de uma hora de temporal.
Mas volto a escrever aqui pra contar pra vocês o que está martelando aqui na “caixola”: a natureza talvez esteja até sendo injusta, mas está se vingando de todo mundo: Presenciamos nos últimos meses o alagamento das comunidades amazônicas, a região do Tapajós, Amazonas, etc. acompanhamos perplexos a toda uma população ilhada em casa pelas águas que subiram demais e inundaram cidades. Uma chuva deixou 18 bairros de Altamira completamente inundados, imaginem só uma hidrelétrica o que fará... agora vemos um tornado devastar e acabar com a vida não somente de 4 pessoas (as vitimas fatais), mas de milhares de pessoas de varias cidades. Guaraciaba (da qual eu nunca tinha ouvido falar antes) teve 70% dela destruída. Não preciso comentar muito sobre isso porque todos devem ter visto nas redes de televisões as noticias.
Parei pra tentar imaginar a dor de uma mãe vendo sua filha arrancada de seus braços por um vento de 130 km por hora... não consegui!
Ao mesmo tempo presenciamos a continuidade da devastação do que resta da floresta, dos rios, de tudo.
Um animal acuado reage, a natureza não consegue mais conter sua fúria e está nos mostrando que em breve dará fim aos seres humanos.
Será que não dá pra perceber que o país que nunca viu tal coisa passe a sofrer tanto pela ação da natureza. Em 2004 presenciamos as chuvas devastarem o nordeste; em 2005 foi a seca que devastou a Amazônia... perai! Eu não estou escrevendo errado? Não seria a seca devastando o nordeste e as águas a Amazônia? Pois é, os tempos mudaram...
Porque os sulistas tem que pagar pela devastação da Amazônia? Porque os nordestinos também pagam com a seca? A chuva inundou logo a região que menos devasta no Pará? A natureza não está escolhendo vitimas, mas avisando que não demorará a matar-nos a todos: brancos, negros, indígenas, fazendeiros ou não, devastadores ou não, porque ela não sabe quem a faz tanto mal, mas se vinga de todos.
Enquanto isso, continuam a nos afirmar que acelerar o crescimento é construir uma hidrelétrica pra acabar com a volta grande do Xingu.
Ah! Só pra lembrar, os pobres estão agora miseráveis e os ricos estão milionários...
Deus disse um dia a Jonas que deixaria Sodoma inteira se houvesse um só justo...
Será que não há mais nenhum???...

quarta-feira, 13 de maio de 2009

A Bíblia na vida, hoje...


Delze dos Santos Laureano *
Adital - ...A partir do Assentamento Pastorinhas e da Ocupação Dandara
1) Para início de conversa
Nada sei da Bíblia além do que aprendi nas interpretações em celebrações eucarísticas na Igreja do Carmo, em Belo Horizonte, ou nas leituras meditativas que faço sozinha, ou em pequenos grupos nos momentos de oração. O que me leva a uma busca incansável da compreensão do sentido dos textos bíblicos é a paixão pela interpretação mesma e a mania de filosofar, talvez a melhor herança que recebi do meu pai, um homem do campo com nome de profeta, Joel. É certo que mesmo sabendo, conforme disse Manoel de Barros, que "compreendo sempre o que faço, depois que já fiz", acompanha-me o desejo de buscar algo para além da experiência concreta e imediata dos fatos. Cultivo em mim uma sede de transcendência, a certeza da presença de Deus/amor na nossa vida, o que nos torna capazes de sermos mais do que a aparente fragilidade humana. E isso, percebo, se dá exatamente quando as pessoas agem coletivamente de forma organizada a partir de uma fé libertadora. Essa a minha experiência com a leitura da Bíblia.Como advogada de movimentos sociais por diversas vezes tive a sensação de estar vivendo a experiência já vivida e contada nos textos bíblicos. Esta percepção me ajuda a descobrir novos modos para a conquista de direitos sociais e a esperança de dias melhores para a nossa sociedade com os marginalizados na nossa sociedade e a partir deles.
2) Um dia o sol não se pôs no Município de Brumadinho
A primeira experiência que tive do texto vivo da Bíblia foi no Assentamento Pastorinhas, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte, MG. A área está hoje destinada ao assentamento de trabalhadoras/res da reforma agrária pelo INCRA. Conhecendo a história daquelas famílias e a sua luta obstinada por um pedaço de terra descobri o sentido de certa passagem do livro de Josué (Capítulo 10,12-14) (1). Após várias tentativas infrutíferas de conseguir, via burocrática, uma área para o assentamento, mais de 100 famílias de trabalhadores rurais sem-terra resolveram ocupar propriedades rurais abandonadas na região. Todavia, as famílias eram sempre retiradas da terra ocupada, após o pedido de reintegração de posse na justiça. Às vezes, antes mesmo de entrar na área eram impedidas pela polícia que, de alguma forma, tomava conhecimento das suas intenções. Aprendendo com essas experiências, as lideranças descobriram que era preciso manter sigilo absoluto acerca da gleba a ser ocupada, até mesmo de algumas pessoas que estavam acampadas com elas na beira da rodovia. Era também primordial escolher bem o dia da ocupação, de modo a retardar ao máximo a chegada da decisão judicial de reintegração de posse. E foi dessa forma, "sendo simples como as pombas, mas espertos como as serpentes", com muita ousadia e organização que os trabalhadores conseguiram enfim ocupar na madrugada de véspera do feriado de Carnaval de 2001 uma fazenda de 158 hectares, há muito abandonada pelo antigo proprietário. A primeira parte do plano já tinha um bom resultado: a polícia não teve conhecimento prévio da ocupação. A segunda parte era dar efetividade à ocupação da terra antes que o proprietário pudesse obter na justiça a liminar de reintegração de posse. Deste modo, na mesma madrugada, as famílias, após acomodarem as crianças nos carros velhos que conseguiram para fazer o trajeto até a ocupação, empenharam-se, todas, no trabalho de aração e de semeadura dos 14 hectares de terra que encontraram apenas com monocultura do capim. Em apenas três dias, trabalhando dia e noite, conseguiram arar e plantar os 14 hectares de terra com verduras e legumes. (2). Foi deste modo que o milagre aconteceu. Após o feriado, quando o juiz da Vara Agrária visitou o local para verificar a situação do imóvel ficou emocionado com o que viu. Verduras e legumes já estavam brotando por todos os lados. A terra já estava cultivada e o imóvel cumprindo a sua função social. A decisão do juiz culminou com a compra da área pelo INCRA.Tudo ocorreu conforme o livro de Josué, só que desta vez em Brumadinho, no Estado de Minas Gerais. "O sol se deteve e a lua ficou parada, até que o povo se vingou dos seus inimigos." Vingaram mesmo foram as plantas, semeadas ligeiras por aquelas/es trabalhador/res. Vingar para as plantas não significa matar, fazer o mal, significa viver, sobreviver, superar as forças da morte. Vingar dos seus inimigos para aquelas/es trabalhadoras/res Sem Terra significou fazer da terra o que o antigo proprietário não foi capaz ou não quis fazer. E como prossegue o texto do livro de Josué, "nem antes, nem depois, houve um dia como esse, quando Javé obedeceu a voz de um homem." Naquele dia, o Deus da vida ouviu foi o clamor das mulheres, as lideranças do Assentamento Pastorinhas, que cansadas de ver faltar o alimento na mesa, mandaram o sol se deter no céu para que a noite (que seria a expulsão daquela terra que não cumpria sua função social) não viesse antes de ser toda a terra plantada. Com a luz do dia, e sendo luz de Deus, as pastorinhas, em mutirão, prepararam a terra e semearam não apenas sementes de verduras, mas sementes de uma vida com mais luz, dignidade. Assim, impediram que a noite da opressão anterior se repetisse. Enquanto milhares buscavam alegria e luz no Carnaval, 22 famílias, na luta, plantaram na terra sementes que tem lhes dado dignidade, alegria e luz para todos.
3) Haverá um novo céu e uma nova terra de Dandara
Dandara, a mulher, ontem foi uma guerreira companheira do líder Zumbi dos Palmares. Como Zumbi preferiu a morte à escravidão. Vivendo livre em uma terra com os seus irmãos ex-escravos não se submeteu aos interesses dos grandes proprietários de terra, que dos negros só queriam a força de trabalho, o suor e o sangue. Desapareceu deste mundo quando desapareceu Palmares, a república negra da Serra da Barriga em Alagoas, nas terras Brasil.A Dandara de hoje, uma comunidade, é a ocupação de famílias de trabalhadores urbanos e rurais ocorrida neste ano de 2009, na Quinta-feira Santa, no bairro Céu Azul,região da Pampulha, em Belo Horizonte. No primeiro momento, aqueles trabalhadores, cansados de serem enxotados que nem cão vadio, de um lado para outro, só tendo a moradia de favor ou de aluguel em barracos de favelas e áreas de risco, entenderam que somente se organizando seriam capazes de conquistar o direito à moradia e o direito a uma vida digna. Naquela madrugada, aproximadamente 130 famílias de sem-casa e Sem Terra cortaram a cerca e entraram em um imóvel de 400.000 metros quadrados - 40 hectares -, completamente abandonado há mais de 3 décadas. Uma área de terreno já urbanizada na região metropolitana de Belo Horizonte. Pensavam estar entrando em uma área pública, reconhecidamente devoluta, e que, portanto, nos termos da lei, pertenceria ao Estado de Minas Gerais. Somente após raiar o sol ficaram sabendo que a área é reivindicada pela Construtora Modelo, que quer fazer no local mais um grande empreendimento imobiliário na capital mineira.Mas o equívoco, em nada atrapalhou o intento daquelas famílias de trabalhadores marginalizados. A disposição de luta e a legitimidade de suas reivindicações mobilizaram diversas forças sociais de apoio e abrigou centenas de novas famílias que, atualmente, já somam mais de mil acampadas e mais 500 famílias em uma lista de espera. Todas essas pessoas descobriram uma unidade de luta que os identifica. E foi a partir desses acontecimentos que percebi a riqueza de outro texto bíblico: o livro do profeta Isaías (Capítulo 65,17-25), que narra a construção de um novo céu e de uma nova terra. O autor deste texto nos apresenta a realização do projeto de Deus: vida em abundância para todos e tudo, um mundo de paz, harmonia e alegria. Quem esteve lá e não sentiu esse projeto de Deus na Ocupação Dandara?Aquelas famílias com coragem e disposição para a luta e para o trabalho mostraram na prática que é possível criar esse novo céu e essa nova terra. Já na Quinta-feira Santa, dezenas de lideranças das Brigadas Populares, do MST (3) e do Fórum de Moradia do Barreiro "lavaram" os pés de centenas de famílias crucificadas na falta de reformas agrária e urbana. Partilharam o pão do sonho da casa própria conquistada na luta. Beberam o vinho amargo de resistir à truculência da tropa de choque que aterrorizou todos no acampamento, enquanto mundo afora nas igrejas cristãs celebrava-se a missa do lava-pés. Antes da Sexta-feira Santa, na comunidade Dandara, Jesus já havia ressuscitado. Ali brilhava, como no Natal, a estrela que guiou os magos para o encontro com Jesus de Nazaré. O projeto revolucionário de Jesus não morreu na cruz. Ele está vivo em cada um/a dos que acreditam ser possível viver melhor. E viver melhor é caminhar junto nesta vida, com coragem e determinação, conspirando a construção de "outra terra e de outro céu’. Conforme já anunciou a irmã Rosário: estão todos ali caminhando seguindo bons pastores e boas pastoras.E realmente, a Ocupação Dandara é o mais novo sinal de que Deus está criando ali pelas mãos e organização dos trabalhadores um novo céu e uma nova terra. Nada está pronto, mas está tudo em construção. "As coisas antigas nunca mais serão lembradas, nunca mais voltarão ao pensamento." Por isso já estão todos alegres. Não haverá mais choro ou clamor. Lá, no Dandara, correm por todo lado as crianças, que não estão condenadas a morrer precocemente, de fome ou vítimas do tráfico de drogas. Tudo porque naquela terra serão plantados alimentos, serão construídas casas onde não haverá espaço para drogas e violência. A ordem ali é que crianças estudem e brinquem. Criança que brinca e estuda é projeto de cidadania. Famílias que vivem em comunidades são famílias de esperança.Ali no Dandara, de forma organizada, trabalhadores e pessoas que têm compromisso com a vida, como no livro de Isaias, "construirão casas e nelas habitarão, plantarão vinhas e comerão seus frutos. Ninguém construirá para outro morar, ninguém plantará para outro comer", como sempre aconteceu no mundo em que viviam: pedreiros sem casa que sempre fazem casas luxuosas para outros morar. Ali, "a vida do povo será longa como as árvores." Ninguém trabalhará inutilmente, ninguém gerará filhos para morrerem antes do tempo, porque todos serão a descendência dos abençoados de Javé."É bom que os lobos e os leões conheçam o que está no texto do profeta Isaías e venham aprender a se alimentar de todas essas belezas com o povo do Dandara, porque está escrito no texto sagrado que "ninguém causará danos ou estragos ali." Olhem por toda parte naquela ocupação e ajoelhem-se diante do milagre de que são capazes os pobres. Vejam como podem construir com os restos dos ricos. As 1084 barracas são todas de pedaços descartados de construções, madeiras velhas, carpetes usados, plásticos e panos emendados. A partir do lixo de uns estão construindo um novo céu e uma nova terra. São capazes de plantar ao redor das barracas jardins - na terra dura ainda sem adubo -, porque a vida nasce em todos os lugares. São capazes de colocar dons e talentos a serviço de quem precisa. Quem já foi vigilante e prestou serviço militar, com muita alegria e dignidade, ajuda na segurança do acampamento. Quem é carpinteiro, além de construir o seu abrigo ajuda outras famílias a fazer as suas barracas. Unidos fizeram-se fortes para resistir à truculência da tropa de choque para esperar o milagre da suspensão da ordem de reintegração de posse pelo Tribunal de Justiça.Tudo isso confirma o que temos anunciado há muito tempo: um mundo novo está sendo construído, com a graça de Deus e pelos pobres que irradiam a luz e a força divinas no mundo.Quem tiver olhos para ver, veja lá e aqui: http://www.ocupacaodandara.blogspot.com/.
Belo Horizonte, 12 de maio de 2009.
Notas:
(1) "Foi então que Josué falou a Iahweh, no dia em que Iahweh entregou os Amorreus aos israelitas. Disse Josué na presença de Israel: "Sol, detém-te em Gabaon, e tu, lua, no vale de Aialon!" E o sol se deteve e a lua ficou imóvel até que o povo se vingou dos seus inimigos. Não está isso escrito no livro do Justo? O sol ficou imóvel no meio do céu e atrasou o seu ocaso de quase um dia inteiro. Nunca houve dia semelhante, nem antes, nem depois, quando Iahweh obedeceu à voz de um homem. É que Iahweh combatia por Israel."
(2) Optaram por plantar verduras e legumes, porque as crianças estavam desnutridas. Precisavam garantir o mais rápido possível alimentos de qualidade para salvar as crianças. Adubaram de forma orgânica, porque Valéria, uma das Pastorinhas, tinha se formado em Técnica Agrícola na Fundação Helena Antipoff, onde agroecologia é uma prioridade absoluta.
(3) Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; http://www.mst.org.br/

‘Não basta salvar a nós, indígenas; mas, toda a humanidade e toda a criação’


IHU - Unisinos *
Adital - "Em seu caráter de indígena, nossa teologia se converteu em trincheira para defender nossa identidade mais profunda e em possível ameaça para a nova teologia trazida da Europa, que a atacou persistentemente; e, por isso, ela se fez clandestina, se mascarou ou se sintetizou com a perspectiva religiosa prevalente, a fim de conseguir sobreviver." A explicação é Eleazar López Hernández, indígena mexicano, com trinta anos de sacerdócio na diocese de Tehuantepec. Em entrevista concedida por e-mail a IHU On-Line, mostra a importância da Teologia Índia no sentido de resgatar valores adormecidos pela sociedade atual e afirma que ao longo dos anos, a "teologia indígena teve que aprender a ajustar-se às possibilidades que dava o contexto social e eclesial de cada momento".
A defesa de seus costumes, da maneira particular de ver vida e se relacionar com Deus, não significa que a entrada dos índios na Igreja "tenha sido somente uma simulação ou um mecanismo de sobrevivência", assegura. A conversão dos indígenas em cristãos "não implicou uma ruptura com nosso processo anterior de busca de Deus, senão sua afirmação, fortalecimento e plenificação", assinala. E prossegue: "Desde o princípio ficou muito claro para nós que o Deus de nossos pais e avós (Ipalnemohuani = O que nos dá a vida; e os muitos outros nomes de Deus que eles usavam aqui) é o mesmo Deus de nosso Senhor Jesus Cristo".
A partir do momento em que a consciência ecológica ganhar dimensão e destaque na humanidade, a Teologia Índia vai desenvolver um trabalho importante no sentido de "deter a agressão brutal que a economia capitalista realiza sobre a terra, tornando-a sustentável". E projeta: "assim poderemos sonhar entre todos(a)s que ‘outro mundo é possível’".
Eleazar López Hernández nasceu em Juchitán, Oaxaca, México, e é descendente de uma família indígena zapopteca. Ingressou no seminário em 1961 e formou-se em Filosofia e Teologia. Também participou do primeiro curso de pastoral indigenista em Caracas, da primeira Conferência dos povos indígenas, em 1975, em Vancouver, da contribuição indígena para o Encontro de Puebla e de Santo Domingo, como conselheiro. Atualmente, trabalha no Centro de Auxílio às Missões Indígenas, participa da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo e da equipe teológica Ameríndia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - No III Simpósio latino-americano de Teologia indígena, organizado pelo Celan em 2006, foi abordada a Cristologia indígena. Quais são as referências cristológicas para falar de Cristologia indígena?
Eleazar López Hernández - Quando falamos de "cristologia indígena", consideramos duas vertentes de reflexão:
a) A recepção inculturada que fizemos nós indígenas da evangelização cristológica, feita pelos primeiros missionários;
b) A elaboração teológica indígena a partir das Sementes do Verbo plantadas por Deus na história e nas culturas de nossos povos antes da primeira evangelização. Encontramos estas sementes plasmadas em suas tradições mais antigas.
Na primeira vertente, nós, indígenas, captamos que, apesar do inadequado da primeira evangelização que nos chegou unida ao projeto colonizador, a Igreja era portadora de uma proposta valiosa e digna de ser assumida. Por isso, nosso(a)s avós se converteram a Cristo e o assentaram na esteira de nossa busca de Deus. Mas, por aquele dito de que "quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur", nós, indígenas, usamos nossas categorias teológicas anteriores para entender e viver a fé cristã; e, neste sentido, incorporamos Cristo em nossa cultura, indigenizando-o; nós o inculturamos em nossos esquemas, revestindo-o com nossos trajes tradicionais. Em outras palavras, nós o recebemos em nossas malocas e em nossas casas culturais. E é isto que mostramos ao falar agora de cristologia indígena.
Porém, não só permanecemos aí como se tudo o que se refere a Cristo viesse de fora; também remexemos em nossa história e em nossos cântaros milenares para encontrá-lo existindo no meio de nós. Assim, na segunda vertente, detectamos as "Sementes do Verbo" que pré-existiam, antes da chegada da Igreja, em nossas culturas e as explicamos hoje para mostrar que Deus sempre nos acompanhou e nos manifestou seu amor de Mãe-Pai. Essas sementes são a prova da presença entre nós do Verbo, "que ilumina todo homem que vem a este mundo" e se manifesta na sabedoria milenar de nossos povos (encerrada nos mitos e ritos) e nas pessoas históricas (como Quetzalcóat), que viveram profundamente as idéias ou utopias que animaram nosso longo caminhar. Esta é a cristologia feita a partir de nossa história da salvação, que levamos com prazer aos demais irmãos na fé e que não tem por que inimizar-se com a cristologia oficial. Nós a encontramos na vivência da religiosidade popular indígena e mestiça como um conteúdo teológico e cristológico impressionante que se expressa nos nomes e atributos que damos a Cristo. Esta nomenclatura teológica já está sendo sistematizada por irmãs e irmãos indígenas.
IHU On-Line - Como a teologia Índia se move e se condiciona dentro dos espaços eclesiais e aí se reproduzem?
Eleazar López Hernández - A teologia dos primeiros povoadores deste continente existe desde que nossos povos fizeram sua aparição nestas terras, pois Deus tem sido a razão de ser e o garante de nossa vida desenvolvida aqui em milhares de anos. Nossa teologia nativa foi feita "indígena" quando os europeus impuseram, com o descobrimento e a colonização, essa categoria social à realidade dos povoadores nativos. Em seu caráter de indígena, nossa teologia se converteu em trincheira para defender nossa identidade mais profunda e em possível ameaça para a nova teologia trazida da Europa, que a atacou persistentemente; e por isso ela se fez clandestina, se mascarou ou se sintetizou com a perspectiva religiosa prevalente, a fim de conseguir sobreviver. A religiosidade popular foi o espaço privilegiado de sua reprodução durante estes últimos 500 anos.
Neste sentido, a teologia indígena precisou aprender a ajustar-se às possibilidades que dava o contexto social e eclesial de cada momento. Quando houve boa disposição de aceitá-la, ela se manifestou abertamente; e, quando houve recusa, se refugiou nas covas e nas montanhas.
Esta atitude indígena de defender, inclusive ante a Igreja, nossa maneira particular de ver a vida e de relacionar-nos com Deus não significa que nossa entrada na Igreja tenha sido somente uma simulação ou um mecanismo de sobrevivência. As religiosas, os sacerdotes e os diáconos indígenas de hoje cremos que, apesar das sombras e dos espinhos da ação missioneira da Igreja, houve em nossos(as) avós uma autêntica conversão da mente e do coração a Cristo e ao seu projeto de vida. Só que esta conversão não implicou uma ruptura com nosso processo anterior de busca de Deus, senão sua afirmação, fortalecimento e plenificação. Desde o princípio, ficou muito claro para nós que o Deus de nossos pais e avós (Ipalnemohuani = O que nos dá a vida; e os muitos outros nomes de Deus que eles usavam aqui) é o mesmo Deus de nosso Senhor Jesus Cristo. É o que está inserido na narração da Virgem de Guadalupe no México. Não temos por que assumir um eliminando o outro, senão fazendo que ambos se abracem porque são o único Deus verdadeiro.
IHU On-Line - Em que sentido a teologia indígena nos ajuda a repensar a organização social e política da sociedade e do mundo, no sentido de respeitar as diversidades, a interculturalidade e o meio ambiente?
Eleazar López Hernández - A teologia indígena de hoje forma parte da vida e da luta dos "povos originários" deste continente, e está unida à cultura e história destes povos. Não é somente uma palavra sobre Deus, senão uma proposta ampla sobre a totalidade da vida, na qual Deus está profundamente involucrado. Para entender esta teologia, é preciso tomar em conta o modo pelo qual nós indígenas olhamos não só Deus, senão também a sociedade e a inteira criação.
É aí que nós, indígenas, podemos ajudar a superar a crise que se abate atualmente sobre a humanidade. Frente ao individualismo que isola e faz de cada pessoa um lobo para os demais ("homo homini lúpus"), nós, indígenas, resgatamos o valor da família humana e da comunidade como poder solidário, que nos torna capazes de superar qualquer problema; frente ao lucro capitalista, enfatizamos o valor do serviço e da gratuidade; ante a pressão uniformizante da globalização neoliberal, professamos a aceitação da diversidade como riqueza humana e impulsionamos a harmonização do conjunto mediante o diálogo intercultural e inter-religioso como mecanismo eficaz de solução de conflitos e de colaboração solidária.
Frente à depredação do meio ambiente para gerar rápidos ganhos, propomos a colaboração amorosa e respeitosa com a Mãe Terra como fonte de vida para todo(a)s; frente ao consumismo esbanjador impulsionado pelo mercado, assinalamos a austeridade como única maneira do bom viver sem danificar o meio ambiente. Estas propostas não são belas teorias que lançamos para ver quem as quer vivenciar, mas práticas cotidianas em muitas das comunidades indígenas até o dia de hoje.
IHU On-Line - A luta indigenista apareceu com mais força na Bolívia, no Brasil, no Paraguai. Quais as articulações que favoreceram essas lutas sociais? Que outras ações se deveriam praticar neste sentido?
Eleazar López Hernández - Certamente, depois de uma letargia de séculos, os povos indígenas despertaram para continuar novamente sua caminhada. Presenciamos agora a ressurreição do índio. A Bolívia é, desde logo, a melhor expressão da pujança deste despertar, pois aí os povos indígenas e camponeses sacudiram o jugo de uma minoria não indígena que os dominava e se deram um presidente de seu próprio sangue e cultura. Porém, a luta indígena se dá em todo o continente sob formas muito variadas e com resultados diferentes: Equador, Brasil, Paraguai, Chile Guatemala, México etc. Setores importantes das igrejas cristãs tiveram de ver com este despertar por seu acompanhamento pastoral; também lutadores sociais que se acercaram dos indígenas contribuíram com recursos e assessorias diligentes; porém, sobretudo são os próprios indígenas que tomaram consciência de sua dignidade, de seus direitos e do valor de sua palavra nestes tempos de crise. Chegamos à conclusão, como o expressam acertadamente os maias, que um novo horizonte de vida se vislumbra por trás das montanhas; ou, como dizem os andinos, o pachakutic está chegando. Chegou o tempo de preparar-nos e de preparar a terra para uma nova semente de vida.
Hoje, mais do que nunca, existem redes e articulações de movimentos indígenas que compartilham saberes e experiências de nossa luta pelos quatro cantos do continente; e estão se dando a mão para seguir em frente. O protagonismo indígena cresceu tanto que no momento atual os acompanhantes não indígenas seguem sendo importantes, embora não sejam indispensáveis para o futuro do processo.
IHU On-Line - Grande parte da população mundial vive em zona urbana. Somente no Brasil, mais de 805 vivem em cidades. Como sensibilizar essas populações sobre a importância do cuidado com a terra? Você vislumbra um cuidado maior com a terra no contexto da América Latina?
Eleazar López Hernández - É uma verdade inquestionável que a população mundial está se movendo em direção às cidades. Também o povo indígena avança para as cidades. Em vários países só estão permanecendo, nos territórios indígenas tradicionais, menos de 50% dos membros das comunidades (mulheres, anciãos e crianças). Porém, isso não significa que se perde o amor e o cuidado da terra. Em vários países, como no México, os que migram, especialmente aos Estados Unidos, normalmente retornam depois de um tempo não muito longo de trabalho, ou enviam grande parte do que ganham, para sustentar suas famílias e também para obras e serviços comunitários. Desta maneira, muitas comunidades se renovam e melhoram sua infraestrutura (prédios municipais, igrejas, escolas).
Nestes tempos está se dando um fenômeno inverso ao que se deu na época colonial, em que se obrigou a nós indígenas a reduzirmos os pequenos espaços das zonas nas quais nos encurralaram. Agora saímos dessas áreas de reserva e de refúgio para colocar-nos no amplo mundo da globalização, recuperando os espaços antes perdidos e aprendendo a interagir na globalização com outros povos e culturas, sem perder nossos valores e nossa proposta de vida. E aí vamos descobrindo que nossa palavra também é válida e valiosa para outros seres humanos que entendem e assumem que juntos vamos pelo menos caminho da terra, nossa mãe e casa grande de todo(a)s. Desta maneira, nossa luta se ampliou, unindo-se a outras lutas de irmãos/irmãs na dor e na esperança.
Por exemplo, os zapotecas do Istmo de Tehauntepec, no sul do México, ao migrar às cidades do norte, nos demos conta que nosso amor à terra ("layú") não se reduz à luta por nossos direitos territoriais, senão que inclui também a grande luta pelos direitos da Mãe Terra ("Guidxilayú"), que abriga por igual a seus filho(a)s indígenas, negro(a)s, branco(a)s, amarelo(a)s. E assim, junto com outros seres humanos chegamos à conclusão de que não basta salvar a nós indígenas; é preciso salvar toda a humanidade e toda a criação. Neste sentido, vislumbro no futuro que, na medida em que esta consciência ecológica fundamental, que está no pensamento e na teologia indígena ancestral, se transmitir por contágio aos demais, será factível deter a agressão brutal que a economia capitalista realiza sobre a terra, tornando-a sustentável; e assim poderemos sonhar entre todo(a)s que "outro mundo é possível", tal como se proclama nos Fóruns Sociais Mundiais. O modelo capitalista já não tem alternativas de vida ante as crises cada vez mais recorrentes que lhe sobrevêm. Faz falta um novo modelo de vida, mais humano, mais ecológico e mais divino. Nós, indígenas, temos muito que aportar a esse respeito.
IHU On-Line - Quais são os desafios da teologia indígena na América Latina?
Eleazar López Hernández - Desafios da modernidade neoliberal. O maior desafio que se apresenta não só à teologia indígena como tal, mas também aos povos indígenas, é a ameaça de extinção que pesa sobre nós e sobre nossas culturas por causa do modelo atual de sociedade que avança sobre o que resta de nossos territórios, de nossos recursos naturais e inclusive de nossos saberes ancestrais. Como impedir que sucumbamos ante a violência dos mega projetos viários, turísticos, mineralógicos, de produção energética, de biocombustíveis? Como manter nossa vida cultural e espiritual, quando, por causa da migração forçada já fomos movidos a terras estranhas?
Desafios das próprias comunidades indígenas. O impacto da modernidade no mundo indígena está causando um enorme abismo entre os mais idosos e as novas gerações. Os mais velhos já não encontram nos jovens o mesmo eco que antes existia para assegurar no futuro a continuidade das tradições; isso devido principalmente à educação alienante que esses jovens recebem das escolas oficiais e devido aos "valores" que transmitem os meios de comunicação. Isso se agrava com o afastamento destes jovens em relação às suas comunidades, por causa da migração. Se não encontrarmos maneiras de resolver satisfatoriamente este problema, entusiasmando as novas gerações indígenas por sua cultura e espiritualidade, pode dar-se a extinção indígena mediante a desintegração das comunidades que são as verdadeiras depositárias e garantes da reprodução cultural e religiosa.
Porém, precisamente por este desafio tão extremo, muitos irmãos e irmãs estão realizando processos interessantes de reformulação cultural e religiosa, exatamente como sucedeu na antiguidade, quando passamos de ser nômades a sedentários e daí nos guindamos às altas civilizações. E nisso também está havendo muita criatividade e entusiasmo entre as novas gerações. A teologia indígena está se recriando nos novos contextos de hoje, resgatando mais do que a terra, o espírito dos mitos e dos ritos; e envolvendo-se nas atuais lutas de nossos povos pela vida digna, pelos próprios direitos e pela autonomia.
IHU On-Line - Como a teologia indígena se ajusta à conjuntura atual?
Eleazar López Hernández - A teologia indígena atual não é mera repetição de mitos e ritos do passado, como uma tradição que se vai tornando cada vez mais obsoleta; senão uma utilização das ferramentas e das luzes do passado para entender o presente e para construir futuros dignos de serem vividos. A teologia indígena de nossos tempos é necessariamente resultado de ajustes da experiência de Deus que fazem nossos povos e de nossa sabedoria religiosa às conjunturas cambiantes. Ao responder aos desafios de hoje, damos razão e testemunho da esperança que nos anima a seguir lutando como o fizeram nossos antepassados. Mais que um conteúdo teológico fixo, que mantemos contra o vento e a maré, a teologia indígena é um olhar de fé com o qual nos atrevemos a enfrentar as vicissitudes da história que nos toca viver em cada momento.
IHU On-Line - Quais foram os ganhos e as limitações em usar o termo "Teologia indígena" na V Conferência em Aparecida? Quais são os ganhos e perdas dos indígenas em Aparecida?
Eleazar López Hernández - A Teologia indígena ganhou muito em Aparecida. Jogamos na cancha da V Conferência do Episcopado latino-americano e fizemos vários gols, embora também tenham feito alguns contra nós. Como já expressei no balanço que fiz desta Conferência: "Muitas coisas nós, indígenas, conseguimos em Aparecida e que já foram assinaladas: em primeiro lugar, estivemos física e moralmente em Aparecida, através de vários indígenas delegados oficiais de suas Conferências; através de bispos defensores da causa indígena, de teólogas e teólogos solidários da Ameríndia; através de irmãs e irmãos indígenas que expressaram sua voz fora da Assembléia por diversos meios e obtiveram impacto em muitos bispos. A presença indígena foi evidentemente notória e significativa".
"Os inimigos da causa indígena não conseguiram calar-nos nem condenar-nos, embora houvesse intentos de fazê-lo. Todo o contrário: obtivemos simpatia, aproximação e diálogo em Aparecida. Pouco a pouco fomos oferecendo, como Juan Diego, nossas flores cortadas no Tepeyac, e pudemos fazer que teólogos e bispos de Aparecida fossem se sensibilizando e abrindo para nossa causa. Com o auxílio de teólogas e teólogos amigos elaboramos aportes e modos indígenas, solidamente fundamentados e adequadamente expressos, que circularam exaustivamente nas mesas de debate. Todos tiveram acesso à palavra e à perspectiva indígena e a tomaram em conta para suas decisões. Não é fruto da causalidade que no final houvesse um amplo eco da voz indígena na Conferência. Por este esforço coordenado dos de dentro com os de fora se alcançou que praticamente todas as propostas da Pastoral indígena latino-americana recebessem o aval e fossem incorporados no documento final, embora alguns tenham sido matizados."
Em relação ao que não ganhamos, reconhecemos que a única perda em Aparecida foi a não oficialização do termo Teologia indígena no Magistério da Igreja. O manejo que se deu do borrador do documento conclusivo e as votações que se fizeram para aprová-lo não nos favoreceram por uma margem muito pequena; e este resultado ligeiramente adverso foi possível apesar da oposição explícita do responsável da Congregação para a Doutrina da Fé.
Por isso, no final, um bispo do Panamá comentou: de que outra oficialização necessitamos, se o próprio Papa Bento XVI usou sem matizações o termo "teologia indígena" em cartas dirigidas ao Celam, indicando-lhe que leve a cabo um processo de discernimento para clarificar os pontos nevrálgicos que ainda existem na Teologia indígena? Se a mais alta autoridade da Igreja usou o termo Teologia indígena, que mais faz falta para oficializá-lo na Igreja?
Outros bispos acrescentaram: Que bom que não a oficializaram, pois assim a Teologia indígena pode seguir caminhando na liberdade dos filhos de Deus.
IHU On-Line - O senhor diz que a teologia indígena vive um novo momento. Como as promessas e esperanças se confrontam com temores e incertezas nessa trajetória?
Eleazar López Hernández - As ‘promessas e esperanças’ em relação à Teologia indígena, nós as temos majoritariamente do lado das comunidades crentes do mundo indígena; os ‘temores e incertezas’ se localizam especialmente do lado dos que tutelam a ortodoxia da instituição eclesiástica. Porém, não nos paralisam os temores e incertezas; pelo contrário: são acicates para avançar no diálogo. Na medida em que os adversários da teologia indígena nos apresentem mais claramente suas dúvidas e questionamentos, mais podemos ajudar a clarificá-los. É o que tem sucedido nos simpósios e oficinas de Teologia indígena organizados pelo Celam. Também nisso estamos aprendendo a interagir com a diversidade teológica que existe na Igreja.
IHU On-Line - Qual é o futuro dessa teologia dentro e fora da Igreja?
Eleazar López Hernández - Desde logo fora da Igreja, a teologia indígena está tendo muita ressonância. Os movimentos indígenas atuais acodem cada vez mais a esta teologia para afiançar seus passos na luta; porque ela é sua maior força.
Dentro da Igreja, a repercussão também é ampla. Muitos bispos de Igrejas particulares com população indígena a estão assumindo explicitamente em seus planos pastorais e na formação de seus agentes; também várias congregações religiosas a tomam em conta para seus projetos de formação, de vida comunitária e de ação missioneira; teólogo(a)s de diversas associações teológicas começam a incorporá-la em suas análises e colocações.
O fato de que tenha havido um espaço tão grande nos debates de Aparecida é sinal de que a Teologia indígena está impactando positivamente no interior da Igreja, não só em nível particular, mas também nível universal, envolvendo suas mais altas autoridades. Poucas teologias obtiveram isso em tão pouco tempo. Mas, o mais importante é que nós indígenas, que estamos dentro da Igreja, a estamos assumindo de maneira cada vez mais lúcida e consciente. E isto, do meu ponto de vista, já não terá marcha atrás.

* Instituto Humanitas Unisinos

quarta-feira, 29 de abril de 2009

"Quando uma amizade dá certo um dos amigos é o próprio Deus!"



Muitas vezes me interrogo sobre o verdadeiro significado da amizade. O que é ser-se amigo de alguém? Uma pesquisa na Internet trouxe-me a seguinte explicação, alojada num site brasileiro: "Amizade", termo originário do latim "amicitate", tem por significado sentimento fiel de afeição, estima ou ternura entre pessoas unidas por laços de família ou vinculação de carácter exclusivamente social, benevolência, estima, entendimento. Num dicionário de Português on-line pude ler: “afeição; amor; boas relações; laço cordial entre duas ou mais entidades; dedicação; benevolência. ”
Confesso que estas definições, apesar de à primeira vista dizerem quase tudo, não dizem nada. Falta-lhes o essencial, i.e., dizer exactamente o que é ser-se amigo de alguém. É o que irei procurar fazer.
Para começar, desconfio sempre de quem me trata por «Meu amigo». Ser-se amigo carece de verbalização. Quem isto diz não é meu e muito menos amigo também. A amizade não se «apregoa», pratica-se. Uma outra atitude que me põe de pé atrás são as palmadinhas nas costas. Tenho sempre a impressão que me estão a dar um «empurrãozinho» para me «atirar» para o precipício. Apetece-me glosar e dizer "Pode ser gente, [ mas amigo] não é certamente porque um amigo não bate assim."
Um amigo é aquele que nos confronta com a nossa «condição humana», com as nossas virtudes e «misérias». E que não se coíbe de nos dar uma palmada nos dedos se entende que isso é imprescindível para podermos arrepiar caminho. Custa sempre levar um soco no peito, mas o verdadeiro amigo não hesita se entende que é necessário para nos chamar à razão. Por vezes, caímos na tentação da cegueira e perguntamo-nos: Como é possível ouvir isto de fulano/ fulana tal? Que grande amigo/ amiga… Mas, passada essa vertigem narcísica, caímos em nós. E acabamos sempre por entender que os amigos devem e podem ser duros connosco.
Ser-se amigo é também rir e encantar-se na alegria e dar o ombro quando a tristeza nos aperta o coração e o muro nos parece intransponível. É lembrar-se do nosso dia de anos, do natal, de uma data especial, de telefonar, de enviar um e-mail, de dizer apenas: «Estou aqui.» É estar-se bem com. É ter alguém para nos escutar, para ir ao futebol, para beber um café e ler o jornal, para passear ao longo da praia da vida. É saber que se tropeçarmos há alguém que está lá para nos amparar.
Um amigo é leal. Jamais nos atraiçoa. Mesmo que isso lhe cause dissabores, mesmo que isso implique sacrifícios pessoais, quando seria mais fácil remeter-se ao silêncio e «juntar-se» à turba.
A verdadeira amizade retribui-se na mesma moeda. Podemos ter muitos conhecidos. Os amigos, porém, vão sempre contar-se pelos dedos de uma mão. Uma coisa é certa. A amizade é como um Bonsai. Precisa de cuidados diários ao longo de uma vida. Aqui reside o verdadeiro segredo para não ficarmos reduzidos à condição daquela mulher de um quadro famoso de Edward Hopper, sentada nua e só na borda da cama de um quarto de hotel, fitando o vazio. Como diz a canção, a amizade "c'est un capital coeur à la bank du temps/ Prêté sans intérêts et sans remboursement."

Fonte: http://joseboia.squarespace.com/journal/2006/7/13/amicitate.html

Supremo Ministro Joaquim Barbosa



Jorge Portugal*
Naquele 22 de abril de 2009, nenhum nobre navegante português ousaria nos “descobrir”. Descobertos fomos pelos olhos e pela voz do primeiro negro que, com altivez e coragem, no topo da nau capitânia do judiciário, admoestou o pretenso comandante.
Naquele 22 de abril de 2009, não caberia um 7 de setembro em que o filho do rei, futuro imperador do país, daria gritos de independência às margens de um riacho qualquer; ali, ouvimos o brado da liberdade e da insubmissão da voz abafada do povo, silenciada por séculos pelos donos do poder, através de sucessivos crimes de lesa-cidadania: “Respeite, ministro! Vossa Excelência não tem condições de dar lição de moral em ninguém!”
Naquele 22 de abril de 2009, nenhuma princesa “bondosa” assinaria uma vaga lei que nos concedia liberdade, mas nos cassava a condição de cidadãos, proibindo-nos o voto, a escola de qualidade e o trabalho digno; presenciamos, sim, a abolição proclamada em nossas almas, 121 anos depois, pela voz corajosa de um Luís Gama redivivo, encarnando todos os quilombos massacrados e abrindo os portões de todas as senzalas: “Vossa Excelência não está nas ruas; está na mídia destruindo a credibilidade de nossa justiça!”
Naquele 22 de abril de 2009, nenhum marechal, de pijama, ousaria proclamar república nenhuma; o pacto de poder que condenou a maioria de nossa gente a ser um povo de segunda classe viu-se desmascarado pela indignação patriótica de um João Cândido reeditado, que fez a chibata girar em movimento contrário, açoitando o lombo dos que se acostumaram a bater, por séculos a fio: “Respeite, ministro! Vossa Excelência não está falando com seus capangas do Mato Grosso!”
Naquele dia, Ogum, Xangô e Oxóssi desceram os três num corpo só e reafirmaram a presença arquetípica da África dentro de nós. Todos os movimentos aparentemente derrotados dos nossos heróis anÿnimos puseram-se de pé, vitoriosos, mesmo que não tivessem vencido uma só batalha. A Revolta dos Búzios, a Revolução dos Malês, o Quilombo dos Palmares, todos, reencenaram seus teatros de operação e puderam, séculos depois, derrotar simbolicamente o inimigo.
Naquele dia, saíram às ruas todas as escolas de samba, de jongo, todos os blocos afros; bateram os candomblés e as giras de umbanda, a procissão da Boa Morte, o Bembé do Mercado de Santo Amaro; brilharam os pequenos olhos da criança negra recém-nascida ao descortinar a luz azul de um futuro melhor.
Naquele dia, materializando todos os nossos sonhos e desejos secularmente negados, Vossa Excelência deixou de ser apenas um ministro do Supremo Tribunal Federal para tornar-se o supremo ministro de todos os brasileiros.
*Baiano de Santo Amaro da Purificação, educador, poeta, membro do Cons. Nacional de Política Cultural(transcrito da página de Opinião do jornal A Tarde de 28.4.09)